Opinião
Alienação: os contornos de um conceito esgarçado
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Sabe-se que a alienação, em seu sentido marxista (pode ser encontrado na parte III, A produção da mais-valia absoluta, em O Capital), refere-se ao processo de distanciamento da realidade, criado, principalmente, pela fragmentação do trabalho. Tal expediente é eficaz por algumas razões, entre elas estão: o desconhecimento do real valor do trabalho e, por sua vez, o valor do excedente por esse trabalho. Assim, a alienação não permite ao trabalhador compreender como sua parcela de responsabilidade está vinculada a outras na configuração do todo; muito menos como o trabalho pode produzir tanto valor para alguém, mas ser remunerado com tão pouco. Um caso emblemático é a famosa linha de produção de veículos. Um montador de retrovisores pode até saber como seu objeto de montagem funciona e mesmo até quanto vale, porém, está longe de saber quanto vale um motor do mesmo veículo, tampouco quanto custa o carro em seu preço final (para o comprador na concessionária). 

Ora, segundo a perspectiva acima delineada, pode-se assegurar que praticamente todos são alienados, uma vez que conhecer toda a dinâmica do trabalho, suas implicações e seu real valor é uma dádiva concedida apenas aos iluminados. Todavia, se houver a localização histórica da percepção de alienação apenas a partir da Revolução Industrial Inglesa, é possível dizer que os trabalhadores braçais continuam alienados do real valor do produto que colaboram para produzir. Com tal circunscrição feita, já se pode realizar algumas descrições interpretativas conforme tal encadeamento histórico. Eis o principal objetivo deste texto.

Longe de desmerecer um aspecto da sociologia marxista, antes, deseja-se entender fortemente a própria extensão de uma noção amplamente empregada em diversos setores, a alienação. Em contraste ao exemplo do operário na fábrica de automóveis, tem-se o professor de História do ensino médio. Ele não leciona todo o conhecimento humano acumulado ao longo dos séculos, na verdade, ele apresenta, quando muito, um panorama dos principais acontecimentos relevantes para o conhecimento tanto da História global quanto da História do Brasil. Com tal expressão segmentada de seu trabalho, o professor de História, segundo a classificação marxista de alienação, é um alienado. Não! Já que seu trabalho não produz valor financeiro, ele não é alienado de sua docência e, ainda, pressupõe-se piamente que o professor de História conheça boa parte do conhecimento “total”.

Eis que é dificílimo para o trabalhador intelectual estar ou ser alienado, salvo no sentido psiquiátrico (muito bem descrito por Machado de Assis em O alienista). Também o artista não participa de tal expediente alienante, já que seu trabalho é o próprio conjunto de seus feitos, vendidos segundo a demanda ou conforme a necessidade. Se alguém produz algo capaz de lhe prover o sustento, mas não está vinculado a uma cadeia produtiva separada do todo, não pode ser alienado. Se alguém produz ou dissemina conhecimento, ou instrução e faz de tal tarefa seu sustento, não fomentando valor financeiro com o produto de seu trabalho, este alguém não pode ser alienado. Contudo, como distinguir, na sociedade das aparências, quem é alienado ou quem está alienando?

Um ponto incontornável: a sociedade das aparências já parece ser uma forma de alienação do valor real das coisas ou, pior, do valor real das pessoas. Entretanto, isso não significa que a alienação desapareceu, ao contrário, ela se transformou. Se outrora era vinculada à divisão do trabalho, hoje ela se manifesta na forma de desconexão com os sentidos do próprio existir, nos imperativos de visibilidade, produtividade e performatividade. “A sociedade do espetáculo”, como diria Debord, ou a “sociedade da transparência”, nos termos de Han, é uma forma de alienação mais sutil e profunda; aquela que distancia o valor real das coisas e, mais grave, do valor real das pessoas. A aparência substitui o ser, e a performance social ocupa o lugar da consciência crítica.

Um torneiro mecânico deveria viver como um operário? Um funcionário de autarquia do governo deveria aparentar ser um burocrata? Um chefe de gabinete de senador poderia ser apenas um secretário com bom salário? O influencer deveria se parecer a quem? Como todos têm as respostas a tais questionamentos, a alienação, no sentido aqui abordado, perece perder ainda mais de seu poder explicativo, pois como não há fixidez social, nem por seus valores financeiros, nem por seus valores morais, cada um pode ser e parecer ser com quem quiser ou com quem puder. Isso demonstra que a alienação, como compreensão valorativa do todo, é um anacronismo, porém, sua expressão psicológica, como parte da depreensão de qualquer tipo de conhecimento, é justamente seu limite aplicável. 

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins.

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