Opinião
Regulação da cannabis medicinal ainda falha ao excluir farmácias de manipulação
Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.
Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária.

No último mês de abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu a Consulta Pública nº 1.316/2025 com o objetivo de revisar a RDC 327/2019, que regula os produtos de cannabis medicinal no Brasil. A proposta corrige uma distorção histórica: a exclusão das farmácias de manipulação do mercado canábico, impedidas tanto de manipular quanto de dispensar produtos regularizados pela própria Agência. No entanto, o texto apresentado está longe de equacionar os entraves do setor e corre o risco de perpetuar a judicialização — ou mesmo ampliá-la.

O texto avança ao permitir que farmácias manipulem medicamentos contendo canabidiol isolado (CBD), o que representa um passo tímido diante da complexidade terapêutica dos derivados da cannabis. Ao manter a proibição de insumos como THC, óleos full spectrum ou broad spectrum — amplamente reconhecidos pelo potencial terapêutico — o texto marginaliza o setor magistral e compromete o acesso dos pacientes a terapias personalizadas.

A própria Anvisa admite que a proposta nasce da pressão jurídica exercida pelas farmácias de manipulação. Vale lembrar que mais de 200 estabelecimentos já judicializaram a questão, com cerca de 100 decisões favoráveis apenas no estado de São Paulo. O tema aguarda julgamento no STF, com repercussão geral reconhecida.

Enquanto isso, médicos e dentistas seguem impossibilitados de prescrever manipulados à base de cannabis. Além disso, há carência de insumos farmacêuticos ativos no país e o único disponível também foi viabilizados via decisão judicial.  A falta de produtos e de segurança jurídica inibe a prescrição e limita o potencial de um mercado que, se bem regulado, poderia atender à demanda com qualidade, capilaridade e menor custo.

Importante destacar que o medicamento manipulado oferece vantagens evidentes: permite personalização da dosagem, diferentes formas farmacêuticas e aproveita o chamado “efeito comitiva”, em que os compostos atuam de forma sinérgica. Além disso, o Brasil conta com mais de 8 mil farmácias de manipulação, o que amplia o acesso territorial ao tratamento.

Não há argumento técnico ou sanitário que justifique a exclusão das farmácias. Os insumos são controlados pela Portaria 344 e já estão submetidos a rigorosos sistemas de vigilância, como o SNGPC. A Anvisa, que alega dificuldade de fiscalização, ignora que essas farmácias já são inspecionadas regularmente pelas vigilâncias locais e operam sob autorizações especiais.

Mais grave ainda é o trecho da minuta que busca limitar as condições médicas passíveis de tratamento com canabinoides, restringindo o uso de THC a doenças graves ou ameaçadoras da vida. Trata-se de uma extrapolação do poder regulamentar da agência. Regular o escopo da prescrição médica é competência dos conselhos profissionais, não da autoridade sanitária. A proposta fere o direito constitucional à saúde e impõe barreiras subjetivas ao tratamento.

Cabe frisar que a minuta tenta coibir que médicos considerem critérios como custo e viabilidade operacional na hora da prescrição. Em um país com tamanha desigualdade no acesso à saúde, é irrealista desconsiderar o preço do medicamento como fator decisivo para adesão ao tratamento. Impor esse veto na regulamentação apenas acentua o abismo entre a terapêutica e o paciente.

No que se refere aos produtos industrializados, a proposta amplia por mais cinco anos o prazo para que empresas convertam suas autorizações sanitárias em registros definitivos, postergando novamente a exigência de estudos clínicos robustos. Enquanto isso, produtos continuam no mercado com base em exigências atenuadas, em contraste com as regras rígidas impostas às farmácias de manipulação.

Outro ponto preocupante é a cláusula que confere à Anvisa o poder de rever e cassar autorizações sem critérios objetivos claros. Isso fragiliza a segurança jurídica e ameaça o direito ao contraditório e à ampla defesa no âmbito administrativo. Decisões técnicas devem ser fundamentadas e transparentes — não discricionárias.

O prazo para sugestões à consulta pública se encerra no início de junho. Ainda há tempo para que a sociedade civil, profissionais de saúde, entidades jurídicas e associações de pacientes pressionem por um texto mais equilibrado, baseado em evidências científicas e na realidade regulatória brasileira.

A regulação da cannabis medicinal precisa garantir acesso, equidade e segurança. Limitar o protagonismo das farmácias de manipulação é desperdiçar um canal legítimo, confiável e capilarizado de fornecimento de medicamentos. A Anvisa tem a chance de corrigir esse curso, mas, para isso, precisará ir além das soluções mínimas.

*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos. 

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