Opinião
A autoestima do povo de Minas: da percepção de atraso à valorização da originalidade

Durante décadas, Minas Gerais carregou consigo o peso de ser vista como um Estado de passado glorioso, mas desconectado do mundo contemporâneo. O mineiro, com seu jeito reservado e introspectivo, e o mineirês, com suas palavras arrastadas e expressões únicas como “uai”, “trem” e “arreda”, eram frequentemente associados ao atraso. Essa visão, marcada por uma leitura simplista da cultura local, ignorava a riqueza dialética de Minas: um estado que sempre transitou entre o local e o universal, o passado e o futuro, o particular e o global.

Minas Gerais é um território de síntese, onde a tradição dialoga com a modernidade de forma única. A memória mineira, com suas montanhas que guardam histórias e segredos, é o alicerce de uma cultura que, ao mesmo tempo, se reinventa e se projeta no mundo. Guimarães Rosa, com sua literatura profundamente enraizada no sertão, é um exemplo perfeito dessa dialética. Suas histórias, universais em suas reflexões sobre a condição humana, encontram nas paisagens mineiras e no linguajar sertanejo um ponto de partida para alcançar o mundo.

Outro exemplo é o Clube da Esquina, movimento que, nos anos 1970, transformou a introspecção mineira em música global. Milton Nascimento, Lô Borges e seus parceiros criaram composições que eram ao mesmo tempo profundamente locais e universais, traduzindo em sons a ambiguidade de Minas: melancólica, mas expansiva; simples, mas sofisticada. Esse movimento musical não apenas deu voz a Minas no cenário internacional, mas também demonstrou que a mineiridade é uma força criativa capaz de dialogar com o mundo sem perder sua essência.

O mineirês, por sua vez, é mais do que um sotaque ou um conjunto de expressões: é uma manifestação da alma mineira. Palavras como “trem” e “uai” não são apenas parte do vocabulário cotidiano, mas carregam significados culturais profundos. São expressões de uma forma de ser que valoriza a sutileza, o acolhimento e a criatividade. Em um mundo globalizado, onde a padronização cultural é uma ameaça constante, o mineirês se destaca como um símbolo de autenticidade. Pesquisas recentes mostram como o sotaque e as expressões regionais ganham cada vez mais reconhecimento como elementos que enriquecem a diversidade cultural brasileira.

A arquitetura mineira também reflete essa dialética entre o local e o global. O barroco de Ouro Preto e Congonhas, com suas igrejas exuberantes e esculturas de Aleijadinho, foi um dos primeiros movimentos artísticos genuinamente brasileiros. Mais tarde, o modernismo da Pampulha, projetado por Niemeyer, reafirmou essa capacidade de Minas de olhar para o futuro sem romper com suas raízes. Hoje, tanto o barroco quanto o modernismo mineiro são reconhecidos como Patrimônios Mundiais pela Unesco, mostrando que Minas é, ao mesmo tempo, guardiã da tradição e vanguarda da inovação.

Minas Gerais é o Estado brasileiro com o maior número de títulos concedidos pela Unesco, abrangendo patrimônios materiais, como Ouro Preto e Diamantina, e imateriais, como o queijo minas artesanal. Esses reconhecimentos internacionais reforçam a ideia de que a cultura mineira, com suas tradições e modos de fazer, não é apenas relevante localmente, mas tem um valor universal.

A literatura mineira, representada por nomes como Adélia Prado, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, oferece um dos maiores exemplos dessa síntese entre o local e o global. Adélia, em sua obra, transforma o cotidiano em transcendência, mostrando que a poesia pode nascer do simples. Drummond, por sua vez, encontrou nas montanhas de Itabira o palco para refletir sobre questões universais, enquanto Rosa usou o sertão como cenário para narrativas que exploram a complexidade humana em toda a sua profundidade.

Essa ressignificação da cultura mineira também se dá nas políticas públicas que abrangem os 853 municípios do estado. A preservação do patrimônio histórico e imaterial, as festas do Congado, as celebrações da Semana Santa e os festivais regionais mostram como Minas consegue valorizar suas tradições enquanto se adapta às demandas do mundo contemporâneo. Cidades como Tiradentes e São João del-Rei são exemplos de como o turismo cultural e sustentável pode ser uma ferramenta para preservar e projetar a cultura local.

Hoje, Minas Gerais é reconhecida como um estado que soube transformar o que antes era visto como atraso em um patrimônio de valor inestimável. Sua cultura, seu sotaque, sua arte e sua história são exemplos de como o local pode dialogar com o global sem perder sua essência. O mineirês, um dia considerado sinal de isolamento, agora é um símbolo de autenticidade; o barroco, antes visto como antiquado, hoje é reconhecido como uma contribuição universal à arte. Minas ensina que a verdadeira modernidade não é abandonar suas raízes, mas utilizá-las como ponto de partida para se conectar com o mundo.

Ser mineiro, no Brasil e no mundo, é carregar consigo um pedaço de história e um futuro de possibilidades. É traduzir a dialética entre o local e o global em cultura, arte e linguagem. É viver com os pés no chão das montanhas, mas com o olhar no horizonte, sabendo que, como diz Adélia Prado, “o que a memória ama, fica eterno”.

*Leônidas de Oliveira é secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais. 

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