Opinião
A seca na seara dos valores
Imagem da notícia

O processo civilizatório se assemelha a uma régua que mede a evolução de costumes, princípios e valores, avanços e retrocessos. Nem sempre ocorrem mudanças que emoldurem a história do Homem, principalmente ante a paisagem de devastação que flagra crescente litigiosidade entre seres e Nações, desvairada competividade no campo dos negócios e empreendimentos, luta acirrada entre grupos, alas e até credos religiosos, cada qual com a ambição de brilhar na galeria dos maiores e melhores. Em alguns nichos, os avanços fluem sob a égide de pesquisas científicas em áreas como as ciências biomédicas, a inteligência artificial, a agricultura, a engenharia de produção.

Mas é inegável que, no sagrado altar dos valores, a Humanidade vê esgarçada sua teia,  particularmente no plano da Dignidade. A ambição, a luta do poder pelo poder, a inveja, a mentira, as falsidades que impregnam a interlocução entre as pessoas, enfim, a ideia de que se deve tirar proveito de tudo, constituem, entre outros, os braços que puxam o planeta para o seio de nossa ancestralidade. Olhe-se para esse mundo pandêmico como exemplo de interesses políticos, econômicos, geográficos, a denotar que nem a ciência pura está livre de injunções oportunistas, essas que atuam até na esfera eleitoral, como se constata, hoje, por aqui e por acolá, sendo bom exemplo a quadra eleitoral em que vivem os Estados Unidos.

A era do valor do compromisso está indo embora. Nossos pais e avós, ao firmarem negócios, garantiam pela palavra dada ao parceiro, o fechamento do acordo. Os papéis em cartório apenas finalizavam uma cultura sagrada: a força da palavra dada. O débito, o crédito, a crença, a aceitação, a rejeição de alguma coisa tinham por trás o compromisso explícito. A identidade das pessoas e perfis era ancorada na conversa que ditava as regras do cotidiano. Claro, havia desavenças. E até mortes nos conflitos de famílias que lutavam pelo poder. Mas certo respeito se via até entre rivais.

A educação era um momento de grandeza. Os pais lutavam, suavam, apuravam seus recursos para formar os filhos. Não eram Bolsas de Valores que pescavam o dinheiro. Os pais guardavam seus mil réis em velhos e pesados cofres ou sob o colchão. Formar um filho, dar a ele a educação para enfrentar desafios do futuro – era o ideal dos chefes de família. Que exibiam orgulho pela prole bem educada, instruída. Riquezas foram investidas na educação dos filhos, a ponto de muitos terem morrido pobres. Porém, felizes.

O educador era uma referência. De saber, de grandeza, de boa orientação, de conjunção de bons propósitos. Pinço, aqui, um caso contado por um rabino durante um casamento. A historinha se alastra num vídeo que circula nas redes. Um ex-aluno encontra seu velho professor, aproxima-se e pergunta: “lembra de mim”? Responde o mestre: “Não, quem é você? Ah, deve ter sido meu aluno”. O rapaz relembra a situação ocorrida na escola. Viu um colega com lindo e caro relógio e o surrupiou. O menino,  ao constatar o roubo, abriu o bico. Quem foi, quem não foi? Balbúrdia. O professor fechou a porta e pediu que todos formassem uma fila. O raptor ficou desesperado. Iria ser flagrado, pois o professor iria procurar o relógio em todos os bolsos. Surpresa: pediu para todos fecharem os olhos. E assim conseguiu recuperar o roubo. O ex-aluno continua a conversa: “professor, o senhor salvou minha alma, minha dignidade. O senhor sabe que fui eu”. O mestre: “não, eu nunca soube que foi você. Eu também estava de olhos fechados”.

Belo exemplo de educador. Que não tinha intenção de punir, mas a de transmitir o legado de consideração pelo outro. Uma aula de Dignidade. Que cai bem nesses tempos de acusações recíprocas, de falsidades, de ódio, de guerras fratricidas. Somos um mundo cheio de carências materiais. A fome ataca e mata milhões, principalmente na África e em pedaços da Ásia. Mas a fome espiritual, essa que esvazia nossos sentimentos, destrói nossas searas de valores, ataca grupos e classes, principalmente os habitantes de cima da pirâmide social, movidos pelo impulso da ambição.

Qual a razão? A vontade de poder. Nietzsche escreveu sobre “A vontade de Poder”, mas nunca publicou um livro com este nome. Após sua morte, a irmã Elizabeth publicou uma coletânea de notas inéditas. Ali se lê: “Você quer um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso! E vocês também são essa vontade de poder – e nada além disso”.

Essa maldita vontade, no meio da maior crise que o mundo atravessa na atualidade, ameaça expandir a Era do Mal.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato

Veja Também

Os estandes que comercializam os pratos classificados para o FGT abrem às 18 horas, com oferta de receitas variadas e acessíveis a todo o...
O presidente do Sebrae, Décio Lima, afirma que iniciativa é uma ação do Brasil soberano, que abre novos caminhos...
Um relatório intitulado “PIB da Música”, divulgado com exclusividade pela Associação Nacional da Indústria da Música (ANAFIMA), revela que o setor musical brasileiro movimentou...
Objetivo é ampliar debate com parlamentares, especialistas e consumidores diante de riscos de monopólio e aumento de preços no setor pet...
Segundo a entidade, um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o percentual estimado de pessoas com deficiência visual...
O levantamento aéreo vai analisar a viabilidade de ocupações e subsidiar estudos para futuros processos de regularização fundiária...
O índice acumula queda de 1,35% no ano e alta de 3,03% nos últimos 12 meses. Em agosto de 2024, o IGP-M subira 0,29% no mês...
A demanda por essa ação específica em Formoso do Araguaia partiu de uma solicitação do prefeito daquele município, Israel Borges...
Ao todo, 1.884.035 contribuintes receberão R$ 2,92 bilhões. A maior parte do valor, informou o Fisco, será para contribuintes sem...
O julgamento terá ampla cobertura jornalística. A Corte recebeu 501 pedidos de credenciamento...
A estrutura do evento já está quase finalizada, segundo a gestão de Palmas: o palco, estandes, tendas e...
O vice-governador esteve presente em três importantes eventos no Tocantins: a festa alusiva ao Dia do Soldado, em Porto Nacional; a final da...
Bancos e instituições financeiras estão impedidos de aceitar novos contratos firmados apenas com a assinatura do representante legal...
Segundo o diretor-presidente da Infra S.A., o Brasil vive um momento de retomada na infraestrutura, com grandes oportunidades...
A taxa de desocupação corresponde ao percentual de pessoas que estão sem trabalho, mas em busca de uma oportunidade. Segundo...
A Vila Sertões estará no Centro de Convenções Arnaud Rodrigues, em Palmas (TO). A abertura da área de box para as equipes será no...
O projeto é coordenado pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) e envolve quatro fases de atuação, incluindo esta etapa de serviços itinerantes...
A criação da cobrança seria para custear a malha viária municipal, sobrecarregada pelo aumento do tráfego após colapso da ponte entre...

Mais Lidas

Agenda Cultural

Articulistas

Atividade Parlamentar

campo

Esporte

Meio Jurídico

Patrocinado

Polícia

Sociedade em Foco

Universo Espiritual

Publicidade Institucional