Opinião
O antigo ensino a distância: o livro como tecnologia de formação
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

O livro físico foi por muito tempo símbolo de status e, consequentemente, de poder. Em épocas que poucos detinham acesso à leitura, o objeto de papel era uma valiosa ferramenta de instrução e acúmulo de saber. Quando a maioria da população pode ler (porque já possui os rudimentos para tanto), com uma disponibilidade jamais vista de livros físicos e virtuais, acontece um fenômeno profundamente interessante: a resistência. No início do aprofundamento da urbanização do Brasil, não foram poucos que adquiriram livros para ornamentar instantes ou mesmo simulacros desses artefatos culturais, pintados à semelhança de fileiras de livros, para enfeitar ambientes frequentados. Mesmo tendo sido um objeto caro em outros tempos, atualmente os preços, dada a qualidade de impressão e acabamentos, entre outros itens, variam bastante, permitindo a praticamente todas as classes comprá-lo.

Um parêntese precisa ser feito, com relação à aquisição desse bem, qual seja, muitos Estados desenvolveram políticas de distribuição de livros (São Paulo é um dos melhores exemplos no país), que vão desde literatura brasileira e estrangeira a obras teóricas de diversos assuntos, para estudantes da rede pública de ensino. Com esse parêntese fechado, volta-se ao fio da propositura deste texto, cujo objetivo é criticar tanto a falta de leitura quanto o uso do livro como símbolo de poder já espedaçado.  

Porém, se o livro como insígnia social perdeu seu prestígio enquanto marcador de distinção, ele ressurge com ainda maior vigor naquilo que sempre foi sua essência: a formação intelectual. De modo menos espetacular e mais profundo, o livro permanece sendo um dos mais eficazes instrumentos de ensino e aprendizagem. E mais: ele se revela como o precursor do ensino a distância, muito antes que os ambientes virtuais, as plataformas educacionais e os algoritmos pedagógicos passassem a mediar a relação entre conhecimento e sujeito.

Ao ser lido, o livro inaugura uma espécie de interlocução assíncrona entre o leitor e o autor, ainda que este último esteja há séculos sepultado. Quando um sujeito dedica-se à leitura, está, de fato, estudando à distância, não apenas no sentido geográfico ou cronológico, mas também em termos epistêmicos, pois transita entre sistemas de pensamento distintos, entre formações discursivas heterogêneas, entre mundos que só se tocam pela via da linguagem escrita. Essa característica faz do livro a mais antiga tecnologia de EaD: silencioso, portátil, repleto de conteúdo e, mais do que isso, carregado da possibilidade de formar leitores autônomos, capazes de produzir sentido por si.

Esse aspecto ganha contornos ainda mais relevantes em tempos de saturação informacional e banalização da leitura. Se por um lado o livro já não detém o monopólio da formação, por outro ele conserva um diferencial inestimável: a profundidade (embora esse argumento possa ser relativizado, seu potencial interpretativo da leitura não perde sua força de maneira nenhuma). Diferentemente dos formatos rápidos e fragmentados que dominam a comunicação contemporânea, esse artefato cultural exige tempo, atenção, resistência ao tédio e disposição para o conflito interpretativo. Por essa razão suficiente, ao contrário do que muitos pensam, o livro não está em crise, está em contracorrente. É justamente isso que lhe garante pertinência.

Com efeito, não é exagero afirmar que o livro permanece sendo o ambiente pedagógico por excelência. Seu espaço, delimitado por margens, por parágrafos e por capítulos, é também um espaço de invenção do pensamento. Nele, o leitor não é apenas destinatário de informações, antes, é coautor da experiência do saber. A cada leitura, algo é reorganizado na consciência: uma ideia é confrontada, uma crença é desfeita, uma dúvida é instaurada. Esse é o milagre silencioso da leitura: a lenta e irreversível transformação do sujeito que lhe empreende.

Em tempos de soluções educativas imediatistas, o livro oferece aquilo que nenhuma tecnologia emergente pode prometer: densidade, complexidade e permanência. Ele não é apenas um suporte de conteúdo; é um convite à formação do espírito, à expansão da linguagem e à construção de uma subjetividade crítica. Por mais que o mundo mude, nada será mais subversivo do que um sujeito transformado pela leitura (não apenas de uma...). Porque, ao fim e ao cabo, o livro não apenas permite a transmissão de conhecimento, ele funda mundos, desfaz muros e refaz destinos.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

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