Opinião
A tragédia da obediência cega
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.
Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da UFT.

Marcel D’Isard, em sua obra Napoleão, narra com riqueza de detalhes e precisão histórica a ascensão e a queda do meteoro europeu homônimo de seu livro. Com um roteiro de cinema engastado pelos anais do século XIX, D’Isard conta como a forma de obediência de um homem transformou toda a geopolítica recente. Emmanuel de Grouchy, o último marechal nomeado por Napoleão em seu tempo de imperador, é quem deixa ver que seguir cegamente ordens, sem a devida crítica temperada pelas experiências, pode ser fatal.

Essa figura histórica, envolta por um contexto turbulento e dramático, serve de metáfora exemplar para uma reflexão contemporânea de grande urgência: a obediência automatizada, desprovida de senso crítico e descolada da compreensão da conjuntura em que se insere, não é virtude, é risco. A história, repleta de episódios em que a fidelidade acrítica foi convertida em desastre, nos alerta contra o hábito de abdicar da consciência em nome da autoridade. A lição que emana de Grouchy, ao não questionar uma ordem estratégica diante de um cenário militar evidentemente mutável, ultrapassa os campos de batalha e reverbera nos palcos modernos da política, das instituições e até da vida cotidiana.

Em um mundo em constante transformação, onde decisões urgentes se entrelaçam a estruturas por vezes anacrônicas, a fidelidade cega converte-se, com inquietante frequência, em cumplicidade involuntária com o erro. Obedecer, quando se torna um ato maquinal, desvinculado de reflexão, não é mais expressão de disciplina, mas de servilismo intelectual.

A burocracia moderna, por exemplo, oferece um terreno fértil para a reprodução dessa obediência automatizada. Quantas vezes funcionários públicos, agentes da lei ou servidores institucionais perpetuam injustiças por simplesmente “cumprirem ordens”? O famoso “estava apenas seguindo o protocolo” torna-se escudo ético para sustentar decisões que, postas sob o crivo da razão e da moral, não se sustentariam. Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, concebeu a expressão “banalidade do mal” justamente para descrever esse tipo de atuação: um mal executado não por monstros, mas por homens comuns, incapazes de pensar sobre aquilo que fazem.

A história não se repete, mas, como advertia Marx, pode ecoar como farsa. Quando o espírito crítico é sufocado em nome da eficiência, da hierarquia ou da disciplina, abrem-se as portas para decisões trágicas, cujos efeitos fazem-se sentir em escala coletiva. O drama de Grouchy, que preferiu manter o curso das ordens previamente recebidas mesmo diante de informações novas e urgentes, é exemplo arquetípico do que ocorre quando a fidelidade se sobrepõe à lucidez. O resultado, como se sabe, foi a derrota de Napoleão em Waterloo, um ponto de inflexão na história europeia que talvez pudesse ter sido evitado com uma decisão menos subserviente e mais estratégica.

Portanto, torna-se imprescindível reabilitar, em todos os níveis da vida social, a coragem de pensar. A razão crítica, aquela que se recusa a aceitar o imperativo apenas porque foi enunciado por uma voz investida de poder, é fundamento indispensável para a saúde das democracias, a ética das instituições e a dignidade dos indivíduos. O verdadeiro exercício da obediência deve ser dialógico, interpretativo e circunstanciado. Onde a autoridade é cega, a catástrofe costuma enxergar com nitidez.

*Thiago Barbosa Soares é analista do discurso, escritor e professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

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